"Celebrar a Páscoa da libertação, do amor e da vida": mensagem de Páscoa 2020 de D. José Ornelas
Celebramos, este ano, a Páscoa no meio de grandes perturbações e cuidados, que envolvem as nossas famílias, a sociedade e a Igreja, no mundo inteiro.Esta é uma situação altamente desafiadora para toda a humanidade, que veio alterar os hábitos de todos, também no que diz respeito ao modo de celebrar esta que é a maior festa do ano para os judeus e os cristãos.
Mas nem por isso, a situação que vivemos deve fazer desvirtuar o valor e a finalidade da Páscoa. Pelo contrário, é em situações como esta que a importância e o sentido desta festa se revelam em todo o seu esplendor.
Antes de mais, a Páscoa é, nas nossas culturas, uma das mais antigas festividades da humanidade, que celebrava o recomeço da vida, na natureza e nas atividades humanas, altamente condicionadas pelo frio e perigoso inverno. É, por isso, a celebração da vida, da alegria, da esperança, anunciando que cada crise apela a uma superação, cada noite anuncia o surgir da luz da aurora, cada tristeza cria o desejo de nova alegria, cada morte é um grito de sede da vida. Essa ambivalência não anula a celebração da festa, mas dá-lhe valor e sentido, proclamando e criando esperança e caminho, no esforço de superação dos dramas da humanidade.
Na tradição judaico cristã, a Páscoa está originalmente ligada à libertação da escravidão e da humilhação e ao caminho, sempre árduo de unir as pessoas, e de criar uma pátria de liberdade e dignidade para todos. A nossa Páscoa tem como protótipo a libertação do povo de Israel da escravidão do Egito. Aí, Deus revela-se como salvador, libertador e defensor do seu povo. Este ato fundacional da fé, será sempre tornado possível por Deus, mas através de Moisés e dos que, nesta terra, foram rasgando o caminho para a liberdade e a dignidade. Será uma festa celebrada em cada família, todos os anos, como memorial recriador dos valores e da energia da fé no Deus libertador e criador da justiça, da fraternidade e da paz, mesmo nas situações mais dramáticas da história.
Foi esta festa que Jesus celebrou com os seus discípulos – a sua nova família, proveniente de todos os povos da terra – dando-lhe um caráter mais radicalmente libertador. Ele passou a vida prodigalizando sinais de saúde, de reconciliação e de vida, e anunciando que é possível superar conflitos, guerras, egoísmo e ódios que destroem as pessoas, as famílias e a humanidade. Por isso, entregou-se totalmente à construção desse mundo e encarou, com amor e coragem, a recusa, a perseguição e a morte. Mas o seu projeto não acabou: Ele ressuscitou, dando novo sentido à libertação, e abrindo novos caminhos e novos horizontes à esperança e à vida.
Ele diz-nos que, quando parece que as crises deram cabo do mundo e da vida social que tínhamos, outros caminhos, outras formas de relação, de economia e de organização são possíveis, emendando muitos erros dos velhos caminhos a que estávamos habituados.Ele mostra que, quando parece que os nossos planos e sonhos saíram frustrados pela crise, novos horizontes e novas soluções vão aparecendo, a partir de pessoas e valores que subestimávamos, fortalecidos pelos esforços criadores que usámos para ultrapassar as dificuldades.A sua vida, morte e ressurreição mostram que, mesmo quando parece que a vida está a acabar, está apenas a começar e a abrir-se ao amor poderoso do Pai do Céu e Criador de toda a humanidade.
Viver assim a Páscoa é recuperar o seu autêntico valor de recriar o projeto de Deus para o mundo. Sintomaticamente, Jesus dá início a esta etapa final da sua vida na terra numa ceia com os seus discípulos, como testemunho de partilha dos dons de Deus ao longo da história e como anúncio do mundo novo em que a ninguém falte o pão da mesa, da vida e da esperança. Durante essa ceia Ele carateriza o futuro como tempo de solidariedade, serviço e amor (a lavagem dos pés), até ao dom da própria vida, no pão e vinho que são o seu ser e a sua vida colocada ao serviço do mundo. Na tradição judia, os pobres que não tivessem meios, poderiam ir ao tesouro do templo buscar o necessário para comprar o pão e o vinho para a ceia. E, antes de se sentar à mesa, o chefe da casa devia certificar-se que não havia por perto nenhum pobre que não tivesse com que celebrar a Páscoa, a fim de o ajudar a tornar possível que houvesse Páscoa para todos.
A Páscoa que celebramos nestes dias e as Páscoas do futuro, devem assumir este caráter solidário e integrador de todos. Só assim a força regeneradora do mistério pascal do Senhor se poderá realizar, particularmente nestes tempos. É necessário que cada um de nós se sinta responsável para com os outros, como esta crise nos foi mostrando. Está havendo, e vai intensificar-se, a necessidade de voluntariado, de colaboração, de generosidade, de abertura do coração a quem precisa, de trabalho em rede, que gera comunhão e fraternidade. Celebremos estas festas aceitando, agradecidos, os dons de Deus e partilhando-os entre nós, particularmente com quem mais precisa.
É esta a Páscoa que nós celebramos, nestes tempos de pandemia. Façamos com que a “Páscoa do Coronavírus” não seja apenas a estatística das vítimas e dos desastres económicos que provocou, mas que fique na nossa memória e daqueles que nos hão de suceder, como Páscoa de libertação de antigos ódios, injustiças e opressões, para uma terra de maior justiça, dignidade e esperança responsável para todos, na construção da verdadeira paz. Esse é o sonho que Deus sonha connosco e o desafio que nos propõe, para não nos resignarmos ou deixarmos desanimar pelas dificuldades presentes, como se fosse o fim de tudo. Ele, até a morte, abriu à vida!
Feliz Páscoa da libertação, do amor e da vida!
+ José Ornelas Carvalho
Bispo de Setúbal